O primeiro capítulo, da primeira parte de O Livro dos Médiuns, tem como título a instigante pergunta: Há Espíritos?. Trata-se de indagação inteligentemente elaborada por Allan Kardec que, após refletir sobre as consequências das manifestações mediúnicas dos Espíritos, responde a pergunta por meio de admirável análise, apresentada na forma de argumentações metodicamente encadeadas. De início, Kardec destaca a importância de estarmos conscientes da existência do Espírito após a morte do corpo, sobretudo se pretendemos intercambiar com eles. A dúvida relativa à existência dos Espíritos tem como causa principal a ignorância acerca da sua verdadeira natureza. Geralmente, são figurados como seres à parte da Criação e cuja necessidade não está demonstrada.[...]
Seja qual for a ideia que se faça dos Espíritos, a crença neles necessariamente se baseia na existência de um princípio inteligente fora da matéria. Essa crença é incompatível com a negação absoluta deste princípio. Tomamos, pois, como ponto de partida, a existência, a sobrevivência e a individualidade da alma, que têm no espiritualismo a sua demonstração teórica e dogmática e, no Espiritismo, a demonstração positiva. [...]1
Admitida a existência da alma e a sua individualização, o Codificador conclui:
1o, que a sua natureza é diferente da do corpo, visto que, separada deste, deixa de ter as propriedades peculiares ao corpo;
2o, que goza da consciência de si mesma, pois é passível de alegria ou sofrimento, sem o que seria um ser inerte e de nada nos valeria possuí-la. [...]2
Do aceitamento dessas ideias resulta esta outra questão: E para onde vai a alma depois de sua morte?
As pessoas comuns possivelmente responderiam que a alma vai para o céu, situado acima, no alto; ou para o inferno, localizado embaixo, nas profundezas da Terra. Céu e inferno seriam, pois, lugares circunscritos, impossíveis de serem localizados. Decorre daí o questionamento de Kardec:
[...] Porém, o que são o alto e o baixo no Universo, uma vez que se conhece a redondeza da Terra e o movimento dos astros [...]?2
Argumenta, então, com lucidez: Não podendo a doutrina da localização das almas harmonizar-se com os dados da Ciência, outra doutrina mais lógica lhes deve marcar o domínio, não um lugar determinado e circunscrito, mas o espaço universal: é todo um mundo invisível, no meio do qual vivemos, que nos cerca e nos acotovela incessantemente.
Haverá nisso alguma impossibilidade, alguma coisa que repugne à razão? De modo nenhum; tudo, ao contrário, nos diz que não pode ser de outra maneira.2
A ideia de castigo e recompensa, ensinada por muitas religiões, é algo inaceitável, que fere a lógica e o bom senso, condição geradora de descrença religiosa e falta de fé em Deus. O castigo eterno, então, é algo extremamente desolador, não condizente com o amor divino porque se reveste de terrível punição para o pecador, destituído da menor chance de reparar suas faltas. Neste aspecto, os ensinos espíritas são mais racionais e justos:
[...] Dizei, em vez disso, que as almas tiram de si mesmas a sua felicidade ou a sua desgraça; que a sorte delas está subordinada ao estado moral de cada uma [...].
Dizei também que as almas não atingem o grau supremo senão pelos esforços que façam para se melhorarem e depois de uma série de provas adequadas à sua purificação; que os anjos são almas que alcançaram o último grau da escala, grau que todas podem atingir, desde que tenham boa vontade; que os anjos são os mensageiros de Deus, encarregados de velar pela execução de seus desígnios em todo o Universo [...].
Dizei, finalmente, que os demônios são simplesmente as almas dos maus, ainda não purificadas, mas que podem, como as outras, alcançar o mais alto grau da perfeição, e isto parecerá mais conforme à justiça e à bondade de Deus, do que a doutrina que os apresenta como seres criados para o mal e perpetuamente devotados ao mal. [...]2
De argumentação em argumentação, Allan Kardec nos conduz à compreensão dos fundamentos da Doutrina Espírita. Vemos, assim, que a Humanidade
que habita o mundo espiritual não é constituída de seres criados à parte por Deus: Ora, essas almas que povoam o espaço são justamente aquilo a que chamamos Espíritos. Assim, pois, os Espíritos são apenas almas dos homens, despojadas do invólucro corpóreo.[...]
Se se admitir que as almas estão por toda parte, ter-se-á que admitir igualmente que os Espíritos estão por toda a parte.[...]2
Tais conclusões suscitam, por sua vez, nova indagação: como as almas se apresentam nesse plano de vida? Esta pergunta tem razão de ser porque, aqui, no mundo físico, temos um corpo que atende às necessidades e vontades do Espírito. Mas, como seria do outro lado?
A resposta espírita é simples: O Espírito se manifesta na nova moradia por meio de um corpo semimaterial, o perispírito, que ele já possuía quando ainda se encontrava encarnado. Kardec elucida melhor:
Figuremos, primeiramente, o Espírito em sua união com o corpo. Ele é o ser principal, pois é o ser que pensa e sobrevive. O corpo não passa de um acessório do Espírito, de um envoltório, de uma veste, que ele deixa quando está usada. Além desse envoltório material, o Espírito tem um segundo, semimaterial, que o liga ao primeiro.
Por ocasião da morte, despoja-se deste, porém não do outro, a que damos o nome de perispírito. Esse envoltório semimaterial, que tem a forma humana, constitui para o Espírito um corpo fluídico, vaporoso, mas que, pelo fato de nos ser invisível no seu estado normal, não deixa de ter algumas das propriedades da matéria.[...] 3
Admitido o princípio da existência, sobrevivência e individualização da alma, resta mais uma questão: os chamados mortos podem se comunicar com as pessoas que vivem no plano físico?
O Codificador esclarece, assim: Por que não? Que é um homem, senão um Espírito aprisionado num corpo? Por que o Espírito livre não poderia comunicar-se com o Espírito cativo, como o homem livre se comunica com o prisioneiro?
[...] Por que razão não poderia a alma, após a morte, entrar em acordo com outro Espírito ligado a um corpo, utilizar-se desse corpo vivo, para [...] servir-se de uma pessoa que fale, para se fazer compreendido?4
O confrade Deolindo Amorim (1906-1984), respeitável conferencista e escritor espírita, afirmava que o espírita não deveria ignorar que as obras básicas do Espiritismo têm como referência primordial O Livro dos Espíritos, dedicando-se a estudá-la, primeiramente. Assim, o capítulo I (“Há Espíritos?”), de O Livro dos Médiuns, objeto deste estudo, é, na verdade, desdobramento das questões 76 a 83, capítulo I (“Espíritos”), de O Livro dos Espíritos, porém, apresentadas de forma genérica, como uma introdução mais ampla ao estudo do tema.5
Referências:
1KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2009. Cap. 1, it. 1.
2______. ______. It. 2, p. 22-25.
3______. ______. It. 3, p. 25-26.
4______. ______. It. 5, p. 27-28.
5AMORIM, Deolindo. Cadernos doutrinários. Salvador: Circulus, 2000. Caderno n. 5, it. 2: Relações de O Livro dos Espíritos com outras obras da Codificação do Espiritismo, p. 122-123.
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